quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Violência contra as mulheres nas relações de intimidade: Uma questão de igualdade no contexto social actual (Parte II)

A violência entre pessoas ligadas por laços de intimidade não é um fenómeno recente. A história tem mostrado que a violência sob as mais diversas formas tem sido prática comum desde os tempos mais remotos. No entanto, a violência só se constituiu como um problema social específico em meados do século passado, nomeadamente a partir da década de 60. Desde então, a violência exercida contra as mulheres no contexto das relações íntimas tem sido objecto de forte e crescente atenção social e científica ao nível internacional. Em Portugal, sobretudo a partir do início da década de 90, se começa a verificar uma maior consciencialização sobre a gravidade e dimensão deste problema.
Para se ter uma ideia aproximada da sua extensão e gravidade, consideram-se importantes os seguintes factos, que reflectem uma amostra das ocorrências de violência doméstica, reportadas às forças de segurança portuguesas até 31/10/2008 (Ministério da Administração Interna. Direcção-Geral de Administração Interna, 2008):
· Sinais claros da existência de um aumento significativo do número de ocorrências participadas às forças de segurança;
· Principais dias de registo das queixas: Domingo e 2ª Feira; sendo a hora de recepção das participações principalmente à noite e à tarde; o mês de Agosto surge como o mês de maior incidência e Janeiro o de menor incidência de queixas;
· Taxas de incidência das participações de violência doméstica especialmente elevadas nos Açores, Madeira, comarcas de Sintra, Porto e São João da Madeira;
· Denunciantes, geralmente são a própria vítima, do sexo feminino, casadas e com idade média de 39 anos;
· 85% das vítimas, são do sexo feminino; por outro lado assiste-se a sinais de aumento da proporção de vítimas masculinas (15%);
· Denunciados, são geralmente são do sexo masculino, casado e com idade média de 40 anos;
· Em 16,6 % dos casos, existe posse ou utilização de arma; em 47, 6% existe consumo habitual de álcool e em 11,5% consumo de estupefacientes;
· A intervenção policial ocorre geralmente motivada por pedido da vítima; em 47% dos casos tratou-se de uma reincidência e 46% das ocorrências foram presenciadas por menores; em cerca de 28% dos casos as forças de segurança entraram no domicílio do/a denunciado/a e da vítima;
· Geralmente as situações têm como consequências para a vítima ferimentos ligeiros ou ausência de lesões, sendo no entanto de salientar a existência de diversos casos em que os ferimentos são graves, tendo inclusivamente sido regista a morte de 9 vítimas; geralmente as vítimas não são internadas no hospital nem têm baixa médica.
Nas pesquisas por nós elaboradas sobre violência doméstica contra a mulher, e no que concerne, ao local das agressões, concluímos que a casa, espaço da família, antes considerada lugar de protecção e próprio do mundo feminino, passa a ser um local de grande desprotecção, desamor e risco para as mulheres. Contrariando o senso comum, as pesquisas comprovam que o lugar menos seguro para a mulher é o seu próprio lar. Tais dados reiteram que o risco de uma mulher ser agredida em sua residência, pelo marido / companheiro, ex-marido / companheiro é muito superior ao risco de sofrer alguma violência na rua.
Este tipo de violência manifesta-se de forma particular; isto é, desenvolve-se de forma circular numa sequência de três fases, repetidas ao longo do tempo, o qual designamos de “Ciclo da Violência”. Este ciclo, desenrola-se ao longo de 3 fases: 1ª Fase: Aumento da tensão; 2ª Fase: Explosão da violência e 3ª Fase: Lua-de-mel.
1ª Fase: Aumento da tensão: O agressor enfrenta os seus problemas do dia a dia com tensões, as quais não sabe gerir sem recorrer à violência. Gradualmente, estas tensões vão aumentando, até ao ponto do agressor, sem qualquer pretexto, descarregá-las sobre a vítima, culpabilizando-a. Recorre a motivos poucos consistentes (ex: não ter feito o jantar, não ter passado bem a camisa, etc) para provocar a discussão com a vítima, ao mesmo tempo que a acusa de actos ou omissões que não estão de acordo com o que a vítima espera.
2ª Fase: Explosão da violência: O agressor passa ao acto, sob diversas formas – abuso físico, psicológico e/ou sexual da vítima. Tais abusos poderão atingir elevada gravidade ao ponto de poderem pôr em risco a integridade da vítima ou até mesmo levá-la à morte.
3ª Fase: Lua-de-mel: Período de descompressão caracterizado por uma alteração nas atitudes do agressor. O agressor manifesta arrependimento, com promessas de não voltar ao seu comportamento violento. Recorre a estratégias justificadoras do seu comportamento como por exemplo, o álcool, problemas no emprego, problemas financeiros; envolve a vítima em atenções redobradas, cuidados e afecto para que esta o desculpabilize e não abandone a relação conjugal abusiva.
Inicialmente, os actos abusivos cingem-se a injúrias ou ataques verbais, no entanto, com o passar do tempo, acabam por atingir proporções desmedidas, passando à violência física, aumentando a sua frequência e gravidade ao longo do tempo. Neste ciclo, ocorrem sentimentos de ambivalência por parte da vítima (medo, desesperança, desespero, esperança, confiança, amor), que corresponde à oscilação de comportamento do próprio agressor. A realidade mostra-nos que com o passar do tempo, o ciclo pode evoluir no sentido quase único da 2ª fase que corresponde à explosão de violência.
Relativamente à legislação, encontramos no artigo 152º do Código Penal Português, referência a esta problemática, codificando-a como crime, punível com pena de prisão de 1 a 5 anos. Trata-se de um crime de natureza pública e como tal não carece de queixa mas unicamente de denúncia. A Presidência do Conselho de Ministros / Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres (2002), opina que os comportamentos inerentes às situações de violência doméstica / violências nas relações de intimidade, referem-se a “comportamentos reiterados, que aumentem gradualmente de intensidade e cheguem muitas vezes a situações extremas, situações que as vítimas não raras vezes escondem por vergonha de não serem entendidas, por medo, por razões de dependência económica ou outras”. Neste contexto, é de todo pertinente recordarmos que algumas destas situações, pelo seu grau de gravidade, obrigam ao afastamento do agressor da residência. Tal tomada de decisão apenas pode ser decretada pelo Magistrado competente.
Neste contexto, acreditamos nas intervenções do enfermeiro especialista em saúde mental e psiquiatria e preferencialmente, um acompanhamento em equipa multidisciplinar. Este profissional possui saberes e competências abrangentes que o habilitam a intervir de forma mais eficaz nestas situações, promovendo a saúde da mulher, da família e da comunidade onde estes crimes ocorrem. Neste contexto Matos (2006), é da opinião que “ (…) embora muitas mulheres possam ter o desejo de partilhar um acontecimento como este, nem sempre o contexto de ajuda cria condições facilitadoras para que uma revelação da vitimação tenha lugar. Se, pelo contrário, algumas condições estiverem reunidas (ex: percepção de recursos de apoio efectivos, o facto do profissional saber questionar, saber intervir, manifestar preocupação com o seu bem-estar), a revelação pode ser facilitada.”
Como profissionais envolvidos na assistência de enfermagem em saúde mental e psiquiatria, somos defensores de formas multidisciplinares para melhorar a intervenção junto das mulheres vítimas de violência nas relações de intimidade. Entende-se trabalho em equipa, aquele que é realizado por um conjunto diversificado de profissionais de diferentes áreas e não o trabalho realizado individualmente por cada um deles. Esta nossa preocupação, ocorre porque acreditamos que qualquer mulher que vivencie uma situação de violência se encontra em crise, e de tal modo, encontra-se em constante sofrimento e necessita de toda a ajuda que possamos proporcionar.
No que diz respeito aos enfermeiros, e tendo por base a nossa forma de pensar em enfermagem, acreditamos que, a resposta à problemática das mulheres vitimas de violência nas relações de intimidade, deve pautar-se, acima do seu saber e saber fazer (conhecimentos técnicos e científicos); isto é, os enfermeiros de saúde mental e psiquiatria, devem também desenvolver o seu saber ser e saber estar, tanto entre si como na relação com a pessoa, pois estes factos, constituem a sua essência, os alicerces da relação terapêutica, indispensáveis à pratica do cuidar em saúde mental e psiquiatria.
A todas as mulheres resta lembrar o velho ditado: “O mais profundo e verdadeiro amor é o amor próprio!”

(Publicado pela autora na Revista do DN Madeira no dia 22 de Novembro 2009)