quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Violência contra as mulheres nas relações de intimidade: Uma questão de igualdade no contexto social actual (Parte I)

A sociedade tem vindo a despertar para uma das suas tristes realidades: a violência nas relações de intimidade. As situações de violência, em especial, as que se relacionam com crianças e mulheres, geram na opinião pública indignação e de forma indirecta, aumentam, a consciencialização e a sensibilidade do grupo social face a esta problemática.
Tem-se vindo a alcançar um entendimento consensual acerca da terminologia inerente à problemática da violência dirigida à mulher, sendo esta definida como, qualquer acto, conduta ou omissão que sirva para infligir, repetidamente e com maior ou menor intensidade, sofrimento de cariz físico, sexual, mental ou económico, seja de modo directo ou indirecto (por exemplo, mediante ameaças, enganos, coação, extorsão ou qualquer outro meio), a uma mulher a viver em alojamento comum, isto é, pertencente, ao mesmo agregado familiar. Fruto de um evoluir social constante, aceita-se ainda, que este tipo de violência possa ser fomentada por um conjugue ou companheiro marital ou ex-conjugue ou ex-companheiro marital, ainda que este não habite no mesmo agregado familiar. Importa termos sempre presente que, qualquer situação de violência, tem por objectivo único, o domínio do outro com recurso à opressão, impondo-lhe sentimentos de impotência, subordinação, inaptidão, desvalorização pessoal e medo.
Em 1993, a ONU na Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência Contra as Mulheres define violência contra as mulheres como “ (…) toda e qualquer acção de violên­cia, baseada no género que resulte ou possa resultar, em danos ou so­frimento físicos, sexuais ou psíquicos das mulheres, inclusive amea­ças de tais acções, coação ou privação sumária de liberdade, que ocorre na vida pública ou privada”. Tais situações, habitualmente, vividas no âmbito da intimidade, enquadram – se num padrão de abuso reiterado e contínuo, representando, em primeira instância, uma forte ameaça à saúde das mulheres, sendo elas por si só, responsáveis por morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Em suma, entende-se por violência nas relações de intimidade, todo o tipo de violência que ocorre entre o casal ou entre as pessoas envolvidas em relações de intimidade amorosa. Esta é a forma de violência familiar mais prevalente, podendo se manifestar de diversos modos.
Actualmente, não há consenso sobre o entendimento das causas da violência nas relações de intimidade; sabe-se contudo que a mesma, não conhece fronteiras culturais, sociais, económicas, étnicas, religiosas, de idade ou de género. O sociólogo Michael Johnson, é da opinião de que existem, fundamentalmente, quatro formas qualitativamente distintas de violência entre parceiros heterossexuais:
· Violência comum ao casal: diz respeito a uma dinâmica de violência recíproca que representa uma resposta interpessoal face a um conflito específico; pode assumir um carácter intermitente, episódico / ocasional ou até mesmo isolado, na rotina quotidiana de muitos casais;
· Violência assente no poder masculino sobre o feminino (“terroristic violence”): esta dinâmica é mais séria do que a anterior, pois envolve uma violência progressiva, sistemática e mais grave, inclui dinâmicas múltiplas (por exemplo: violência física, subordinação, ameaças, isolamento e outras técnicas de controlo) e uma menor probabilidade de auto-defesa por parte da vítima; pode ainda acarretar consequências mais severas e envolver um número significativo de tentativas de separação do cônjuge abusivo;
· Resistência violenta: consiste tipicamente na agressão cometida pelas mulheres sobre os seus parceiros que se mostram continuamente agressores e controladores na intimidade; este tipo de violência é, particularmente, cometido num registo de auto-defesa mas pode escalar até actos mais graves (ex: homicídio);
· Controlo violento mútuo: dinâmica típica de relações em que ambos, masculino e feminino, são violentos (ex: verbal e / ou fisicamente) e lutam para ter o controlo da relação.
Durante muito tempo, as situações relacionadas com violência nas relações de intimidade foram silenciadas a nível social. Em nossa opinião, tal facto deveu-se à conotação errónea a ela atribuída, fazendo com que as vítimas de agressão se remetessem ao silêncio, aceitação e tolerância dessas situações. Este tipo de atitude é em primeira instância, um atentado aos direitos humanos. Dela sobressai, um fragilizar da vítima, comprometimento do seu projecto de vida e reinserção social, bem como, comprometimento das relações do circulo familiar e social. Do agressor, emerge uma intenção de controlar e exercer poder e autoridade sobre a vítima; constituindo-se uma forma de resolver conflitos, de marcar a sua posição pessoal em processos de decisão e de corrigir “comportamentos” da vítima com os quais discorda.
Culturalmente, debatemo-nos com representações e crenças enraizadas e transmitidas de geração em geração. O velho ditado popular “Entre marido e mulher ninguém meta a colher”, não tem qualquer validade em termos de violência nas relações de intimidade. Esta violência pode assumir diversas formas, que vão dos maus-tratos e espancamento até ao abuso sexual, violação, incesto, ameaças, intimidação e prisão domiciliária. Não podemos ignorar, no entanto, que a grande maioria de situações que prefiguram casos de violência doméstica são ainda as exercidas sobre as mulheres pelo seu marido ou companheiro.
Cabe aos profissionais de saúde e ao senso social, desmistificar preconceitos e mitos sobejamente enraizados e que apenas contribuem para a minimização e desculpabilização dos actos dos agressores, ao mesmo tempo que, funcionam como obstáculo à consciencialização das vítimas relativamente ao seu real sofrimento.

Mitos e preconceitos relativos à violência nas relações de intimidade:
“Os maus-tratos só acontecem em meios sociais mais desfavorecidos” - A violência doméstica ocorre em famílias de todos os meios sociais – com muitos ou poucos recursos económicos, com níveis de escolaridade elevados ou baixos, etc.
“Ele no fundo não é mau…quando bebe uns copitos fica transtornado” - A violência conjugal não é um acto isolado de descontrolo, nem o álcool é por si só um factor que a explique. Porque é que o agressor, regra geral, mesmo sendo alcoólico, só agride a mulher em vez de outras pessoas?
“Há mulheres que provocam os maridos, não admira que eles se descontrolem” - O marido não tem o direito de maltratar a mulher quando discorda de alguma atitude ou conduta desta. Nada justifica os maus-tratos, os quais constituem crime nos termos da lei penal portuguesa.
“A mulher sofre porque quer, se não já o tinha deixado” - Existem muitos factores que contribuem para a permanência das mulheres em relações maltratantes – receio de represálias, desconhecimento dos seus direitos, falta de apoio, preocupação em relação ao futuro dos filhos.
“Quanto mais me bates mais gosto de ti” - A violência conjugal causa sofrimento físico e psicológico, com impacto negativo para o bem-estar e a saúde das vítimas, conduzindo no limite à sua morte.
“A mulher maltratada nunca deve deixar o lar quando tem filhos “é preciso aguentar para bem deles!....”- A violência conjugal também afecta os filhos/as. Estes, como vítimas directas ou como testemunhas das cenas de violência, tendem a desenvolver problemáticas físicas, emocionais, comportamentais e sociais. Para além deste facto, a mulher que seja vítima de violência pode sempre sair de casa, dado este acto não ser considerado abandono do lar.
“Entre marido e mulher ninguém meta a colher”- Os maus-tratos conjugais são um problema social e criminal que não pode ser tolerado, constituindo um crime público. Somos todos / as responsáveis e devemos denunciar tais situações.
A grande maioria dos estudos de investigação no âmbito da violência nas relações de intimidade, são direccionados para as relações maritais heterossexuais. Mais recentemente, a investigação no domínio dos relacionamentos íntimos tem permitido retratar novas realidades, situando a violência em momentos distintos da relação marital (ex: namoro) e em contextos homossexuais. Ultimamente se verificou este tipo de violência nos sectores juvenis, referenciada na literatura internacional como “dating violence” ou “courtship violence”. Existem estudos que evidenciam níveis inquietantes de violência na intimidade juvenil ao mesmo tempo que comprovam que este tipo de abuso não se circunscreve às relações conjugais mas mesmo em tempo de namoro, o que deverá ser fonte de preocupação e intervenção em contexto social, pois, tais estudos são unânimes em concluir que, as ocorrências de violência no namoro, tendem a aumentar em termos de frequência e gravidade, podendo ser uma antevisão de violência conjugal. Neste contexto, os estudos recomendam que, a intervenção junto dos jovens deverá ser no sentido de: promover a aquisição de conhecimentos acerca do fenómeno; capacitar para o reconhecimento de situações íntimas abusivas; identificar e produzir mudanças nas crenças sócias – culturais que sustentam esse tipo de violência; desenvolver competências para gerir uma situação de violência pelo parceiro; informar acerca dos recursos na comunidade.
A violência contra as mulheres não é um problema das mulheres: é um problema dos homens, é um problema de toda a sociedade. Todo o tipo de violência contra as mulheres é, um atentado aos direitos humanos fundamentais bem como, um desrespeito pela dignidade da mulher, impedindo-a de viver de forma equilibrada o seu projecto de vida. Neste contexto, há um desafio de fundamental importância que se coloca a todos nós – cultivar a vida, denunciando todos os tipos de agressões (violência) sofridas por nós mesmas ou por outras!
(Artigo publicado pela autora na Revista do DN Madeira no dia 8 de Novembro 2009)

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